segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O CRIME DO SOL



E eram assim todas as manhãs: o Sol levantava-se cheio de luz. Radiante! Acordava feliz por que sabia que tinha a companheira mais bonita ao seu lado. Bem, não era mesmo ao lado. A mulher que ele tanto amava, estava sempre distante dele. O trabalho de ambos não permitia que se encontrassem. Eles eram viajantes. A Lua tinha  que iluminar a noite do oriente enquanto que o Sol tinha que dar luz ao Ocidente e vice e versa.
Ambos nunca tinham tempo de falar sobre as viagens que faziam. Casaram-se num dia de eclipse aos olhos dos mais curiosos e a Lua deu a luz à biliões de infinitas estrelas. Eu nunca vi tanta estrela sair da barriga da Lua. De Lua Cheia ela ficou Minguada. Parecia a ponta de uma unha do dedão do pé cortada.
A Lua lhe fizera uma recomendação: “ Tu nunca poderás ficar muito perto de mim e saber sobre a minha vida. O nosso casamento só dará certo se tu cumprires esse meu pedido.” Dissera a Lua no dia do casamento. E o Sol prometeu a Lua que a amaria na distância e  no segredo lunar dela, mesmo em frente à todas  as testemunhas do universo e do céu.
De quando em vez, o Sol chegava um pouquinho mais cedo para despedir-se da Lua e outras vezes a Lua demorava-se um pouco mais a ir embora para ver o seu amado de longe. A Lua ficava transparente... como se fosse a clara de um ovo e o Sol do outro lado parecia a gema.
O Sol nunca perguntara nada sobre a vida da Lua. Foi então que ele viu uma Nuvenzinha transparente e sonolenta aproximar-se dele e sentiu-se tentado em saber um pouco mais sobre a sua companheira Lua:
- Olá Nuvenzinha. Sei que és da Noite. O que fazes aqui?
Ela bocejou sonolenta e disse:
- Procuro um lugar quentinho para dormir. O céu aqui ontem foi uma festa. A Lua vestiu-me como um véu e dançou para que todos vissem. Foi lindo!
O Sol ficou enciumado. Não sabia que a Lua dançava a noite. Ela sempre lhe dissera que trabalhava tanto!
- E o que mais a Lua fez? – perguntou o Sol começando a ficar mais quente.
- Ah, senhor Sol, a  Lua dançou com um homem muito bonito chamado São Jorge.
-E o que ela fazia agarrada a um Santo?
- Comemorava por ele ter matado um dragão que há muitos anos a incomodava.
“Por quê a Lua nunca me falara desse Dragão?”- pensou o Sol desapontado. E a tarde esfriou um pouco.
A Nuvenzinha dormiu e o Sol quase ia se esquecendo de ficar no meio do céu. Era já meio dia.
O Sol não parava de pensar na Lua. Até que adormeceu nas montanhas e acordou do lado do oriente.
Todos falavam da festa do Equinócio. Essa festa só acontece duas vezes ao ano e significa “noites iguais”. Nessa data os raios solares incidem bem mesmo na linha do equador,distribuindo luz igual para toda parte do planeta. É como se fosse uma oferenda de raios de Sol. Nesse dia o Sol banha a Lua de dourado.
Não se sabe o por quê, mas no equinócio a Lua sempre diminui de tamanho. Depois dos dois dias ela cresce novamente.
O Sol estava cada vez mais curioso e enciumado. Um estrela pequenina ainda estava no céu. E ele perguntou a sua filha pequenina:
- O que fazes aqui pela manhã? Não seguiste a sua mãe?
Ela sololenta respondeu:
- Acabei por adormecer. Haja força para aguentar tanta agitação pela noite a fora. Não sei como a mamã consegue ficar tanto tempo acordada.
A estrelinha tinha a fama de falar demais. Por isso o Sol resolvel fazer-lhe algumas perguntas e ela contou tudo que se passava nas noites lunares:
- A mãe Lua é muito boêmia. Ela bebe champagne todas as noites e usa um vestido prateado e pérolas no pescoço. Eu não sei bem, mas acho que ela é uma pérola gigante. Não há quem não se apaixone por ela. A Lua tem uma voz linda e sabe dançar também. Tem noites em que ela se despe e vai banhar no fundo do rio. Ela fala com os peixes, com os pescadores e inspira os casais apaixonados...
O Sol abaixou a cabeça. Sempre pensara que a Lua fosse feita de queijo. Mas agora ele descobrira que ela era uma jóia brilhante que enfeitava o céu. Foi então que ele entristeceu-se ainda mais.
 Agora, os dias do Sol eram para pensar nas noites felizes da Lua. Foi então que ele passou a beber em plena luz do dia. Desde então ele acordava ressacado do vinho e com as maçãs do rosto que eram douradas, avermelhadas.
O Sol já não gostava mais de ir a praia e nem do verão. Já não surfava nas ondas do mar e estava apático.
Ele já não aguentava mais viver longe da sua amada Lua. Sabia que se aproximasse dela poderia derretê-la. Mas não sendo ela feita de queijo como ele pensava, não havia problema algum em chegar um pouquinho mais perto.
Chegou então o grande dia da festa do equinócio. O universo estava todo preparado e enfeitado para a festividade; Saturno colocou no dedo o seu melhor anel, Júpiter usou os seus cristais de amonia, Marte vestiu a sua túnica vermelha, Vênus banhou-se do fogo de seus milhares de vulcões e de sua luz vespertina.
  A Lua estava nova e sorridente como nunca. Usava um vestido adornado de lantejoulas e sapatos de cristais. Anciosa esperava pelos banhos do Sol.
O Trópico de Câncer e todos os outros hemisférios, aguardavam anciosos para que a linha do equador se iluminasse como uma fibra ótica de luz.
Já passavam-se 3 minutos da hora marcada para o equinócio. Uma ruga apareceu na testa lisa da Lua.
De repente o Sol apareceu com os cabelos de fogos a esvoassarem com o vento. Os olhos da Lua cegaram-se.
- O que fazes aqui?- perguntou a Lua ofuscada pelos cabelos loiros do Sol.
- Não hei de cumprir o que me pedistes. Não posso mais ficar longe de ti. Não aguento saber que tu danças alegre e feliz e que bebes sem a minha presença. É esse o seu trabalho? – indagou o Sol
O Sol flamejava de raiva e ciúmes.
A Lua chorava lágrimas geladas.
- Agora choras Lua de sofrimento?
- Não podias ter feito isso... – repetia a Lua a chorar mais e mais – Não te aproximes mais! – suplicava a Lua ao Sol
O Sol viu que a lua não era feita de queijo, nem de pérola. A Lua era feita de cristal. Sem pensar duas vezes ele a abraçou.
Aos poucos ela foi diminuindo: de lua nova transformou-se no quarto crescente, do crescente em lua cheia de dor e desepero até chegar no quarto minguante.
A Lua de cintura fina estava caída nos braços do Sol.  E só nesse momento o Sol descobriu que ela era toda feitinha de gelo.
Antes que ela se derretesse por completo, uma última gota de luar disse:
-Cuide bem das nossas estrelas.
- O Sol matou a Lua!- Gritaram as três Marias em coro.
O Sol, que ajoelhado estava no Trópico de Capricónio, chorava pela sua Lua derramada.
Desse dia em diante, o Sol estava condenado a viver para o resto dos dias sem a Lua. A noite não era mais a mesma. Era uma noite negra e triste. E só então o Sol se percebeu  de que o trabalho da Lua era dar alegria à Noite e festejar a vida.
Incorformado com o crime que cometera, o Sol mergulhou para dentro do mar e apagou para sempre o seu fogo de orgulho e de raiva.
Desse dia em diantes os dias e as noites nunca mais foram iguais...

Ilustração: PATICO 
Autor do conto: MARCELLA REIS

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

 Conto erótico... ou o chamado; Realismo sujo:
 O estupro



 - Tire a roupa!- ordenava uma voz grossa e impetuosa
Diante da voz masculina estava uma mulher ajoelhada ao chão com os lábios pintados de sangue.
-Queres levar um outro murro nessa tua cara ordinária? Queres? -perguntava a voz escondida no escuro
A mulher chorava copiosamente.
- Eu adoro o teu choro... Dá-me mais tesão - dizia a voz, que aparecera por debaixo da luz vagabunda do poste, segurando  seu mastro por debaixo do fato de treino.
-Tira a roupa, vagabunda!
A mulher desabotoou o casaco.
- Que grandes tetas tens, sua vaca! Tira a t-shirt! Já! Agora! Quem me dera chover agora para que lhas pudesse ver arrepiadas e escuras. A chuva lamberia todo o sabor de tuas gulosas tetas, como a minha saliva fará agora.
 O homem aproximou-se da mulher machucada e lambeu-lhe os seios com a sua saliva de tabaco.
A mulher resistia, chorosa, ofegante.
- Eu acho que tu gostas da minha chupada, sua vacarrona!- berrava o homem teso
-Mamarás como um novilho, agora!- disse descendo as calças e empurrando a cabeça loira da mulher para o seu orgão fálico. 
A mulher não falava nada, mas repugnava o acto que o nojento homem a obrigava fazer.
Sem saída, engoliu o pénis cheio de veias, do estranho.
-Gostas, não gostas? Cheira-te bem? Hum? Aiiiii, eu  gozaria da tua cara e na tua cara agora! -disse gargalhando - Terias muita graça. Terias, terias... sua mulher gozada - trocadilhou
-Agora levanta-te
Ela obedeceu. Estava com a parte de cima à mostra. Usava umas apertadas gangas. O corpo da mulher era curvilíneo. Não era gorda, mas também não era magra.
- Tens cá uma barriguinha que eu vou te contar... 
A mulher encolheu-se.
-Tens vergonha do teu corpo? Tens cá uma barriguinha... E as mulheres não querem ter barriga. Tua barriga é boa!- gritava bafejando pelo ar o cheiro do seu absinto
O homem mordeu-lhe o ventre até ficar vermelho, roxo, marcado!
-Gostosa!'Stá aí o rótulo de gaja gostosa, boa. És gostosa demais sua cabra! Berra!! Faça mé, mé, mé!!- disse fazendo menção de lhe dar um pêro na cara. E então ela fez mé, mé para ele. Ele pediu um mé mas sensual. E ela murmurou mé mé, mais sensual. E o homem ejaculou bem gostoso e quando ele ejaculou ela teve um orgasmo também, quase que em simultâneo.
-Tais a ver como não é preciso penetração?- dizia o homem- Um dia como-te, mulher!- Afirmou sorrindo torto com os olhos negros já saciados do desejo.
A mulher limpou a boca machucada com um lenço de papel que costumava trazer em sua bolsa, que estava caída no chão. Vestiu o casaco e disse sorridente:
-Agora vamos embora Maurício, o nosso Carlitos já está a imenso tempo com a babysitting.- sorriu Alinne -Em casa comes-me, disse entregando a aliança ao marido e colocando a sua.
 Os dois saíram do beco escuro abraçados como um casal normal. E a voz impetuosa e grosseira, deu lugar à um homem preocupado com os negócios e com a sua família.




Castiçais:

 
   Esta história eu inventei somente para mim por que estava cansada de viver a minha própria. Inventei uma noite em que eu esperava você de cabelo molhado em que enxugava meu passado na mesa de madeira encerada e cheirosa. Comprei dois castiçais numa feirinha qualquer., um preto e o outro vermelho. Os dois se casaram tão bem...
A chuva caia lá fora e era a canção mais assombrosa e feliz que alguma vez já ouvira. Você tocou a minha campanhia e eu abri a porta de roupão. Você trazia uma ramo vermelho de flores e um vinho frutado. Tomamos ele numa taça balão bem grande e falamos sobre as nossas vidas. Abri a janela para que sentíssemos a pureza fria do vento juntos. Você me olhava na escuridão clara da lua que perfilhava o seu rosto como uma pintura cheia de texturas indecifráveis. Senti aquele arrepio louco que há muito tempo não sentia na espinha e no estômago a correr até o coração.Senti uma droga escorregar pelos meus pulsos. Vontade de beijar a tua boca e conversar ao mesmo tempo. Vontade de te escutar a noite inteira e de te fazer me ouvir. 
Deliciosamente engolir a tua quente respiração.Vontade de me abstrair do mundo todo e abrir as minhas cochas sem medo de ser feliz. De enfiar meus dedos na minha vagina e perfurar a minha vergonha matuta. Eu abri as minhas pernas, sem medo mesmo, porque era a minha oportunidade de fazê-lo naquele momento, porque esta era a história que eu inventei para mim e daí eu podia fazer tudo que eu quisesse. Tudo mesmo. Eu abri as pernas e estava sem calcinhas. Eu te reinventei louro e tinha os cabelos pela metade dos ombros. Escrevi você me agarrando com uma força milimetricamente medida. Uma força macia que massajava a minha tesão. Então a gente fez amor, fizemos sexo, fizemos paixão, fizemos aventura. Fizemos de tudo. Até Dançar encaixados, pénis e vagina. 
Nós dançamos e tudo teu dançou dentro de mim. Bossa nova no meu clítores, rock holl nos meus pelos púbicos, bolero na minha bunda, tango nas minhas virilhas, lambada nos meus quadris, carnaval no meu corpo inteiro. 
Beijo na boca, tanto beijo na boca a gente  deu até a minha língua ficar dormente. Beijo molhado, seco, duplo, com gelo, sem gelo, quente, beijo de tudo quanto era jeito. Puxão de cabelo, chamêgo. Tudo ali naquela sala a gente fez. 
Eu vivi tudo isso nesta história que eu inventei. Traí meio mundo. Bebi sem me embebedar quatro garrafas de vinho. Comi e comi-te sem me estafar. Dormi nos teu braços ao cansaço do sabor da vitória. Acordei de toda esta loucura quando vesti novamente o meu roupão e parei de escrever iluminada pelos dois castiçais comprados numa feirinha qualquer e com meus dois dedos húmidos.

 (Excerto Estória das histórias de Julianna de La Strada escrito por Marcella Reis / desenho de Marcella Reis)









quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Este vídeo demonstra um pouco da personalidade extravagante da escritora Marcella Reis que é alegre, espontânea, adora dançar, ouvir música e ser ela mesma. Pelo seu jeito excessivo e por vezes até  exagerado na medida certa, foi considerada por muitos conhecidos dela como: "A tal espampanante".
Por também considerar-se exótica e invulgar, é que ela decidiu escrever o texto  " A tal espampanante"
A tal espampanante
     
Dizem que sou espampanante. Que tenho as unhas mais compridas do que um escorrega que emborca. Que uso maquiagem de arco-íris nas pálpebras dos olhos e ando sempre com os dedos cheios de anéis mil.
     Se não coloco brincos que me façam cócegas nos ombros, sinto-me pelada. Aí isso sim, já é motivo para eu ser a tal espampanante.
     Meu cabelo nunca tem uma cor só e está sempre na moda mesmo estando fora dela.
     A Julianna é espampanante porque fala alto sendo educada, porque é chic mesmo sendo pindérica. Usa vestidos anos 50 que foram comprados na feirinha antiga dos domingos. Se veste de cupido em dias de São Valentim e come as castanhas do povo alegre de Marvão no São Martinho. Usa botas de cano alto e meias berrantes e a pesar de ter um brilho flamejante no olhar, coloca gliter nos olhos e usa dourado em pleno dia e prateado também.
     Dizem que sou espampanante. Bebo vinho na Praça da Figueira mesmo em baixo do cú do cavalo e fumo fechando o olho esquerdo puxado por um eye liner comprado em um chinês qualquer. Cantarolo na rua músicas antigas do meu coração e ouço roda de choro com os rapazes de Alfama e rio quando ouço fado.
     Tenho um jeito "moleca" de ser, com gostinho de sopa de Juliana de quando brincava de bonecas. Uso um sutiã mil vezes até ficar ensebado de poeira e suor e calcinha rasgada na vértice do tecido. A João, minha mestra de costura, me dissera que roupa interior rasgada era para o lixo. Imagina só então, se ela visse as minhas meias que se rasgam bem mesmo na unha do dedão do pé que, só de vez em quando corto e que encrava sempre por causa da unha grande e dos sapatos apertados de inverno.
     Mesmo assim, dizem que tenho a espampanância por causa do meu colo que é dourado e voluptuoso, por causa do sorriso esgueirado de lado e dos dentes para fora atrevidos e da boca fina que desata a falar sobre um monte de coisas e pessoas e do tempo e de tudo e de nada. Por causa da comida apimentada e cheia de feitiço e das cartas de tarôt e do modo hipnotizante e apaixonante de como as leio.
     Eu até me acho espampanante sim. Digo eu: “A Julianna é espampanante” e eu gosto desta palavra.
     Mas tem dias que eu só quero ter o rosto limpo e as unhas grandes mas sem o vermelho-tomate-maduro-berrante. Tem dias em que ao invés de cantar eu quero ouvir a voz dos outros. Tem dias em que a minha orelha pede sossego e não quer mais ser cabide de metal nenhum. Até mesmo de ouro e de prata. Há dias em que não quero colocar pimenta na comida e nem muito sal e só sentir o gosto que a comida tem sem o seu tempero.
      Há dias em que eu quero chuva e não sol, saudade e não saudação, silêncio e não elouquência.
     Há dias assim na minha vida. Que não uso anéis. Só mesmo o de compromisso. Há dias em que as estrelas não me emprestam o brilho nos olhos e até que bebo menos e fumo menos também.
     Tem dia que eu quero estar longe de Lisboa e do barulho e que ando mais rija e menos faceira e rebolante e que meu cabelo tem a cor de um vidro embaceado da janela de um carro apertado e cheio de gente.
     Nesses dias as pessoas dizem: “A Julianna espampanante está triste.”

(Divagações de uma Julianna chamada Marcella, excerto de sua obra La Strada)
Eu sou

Eu sou aquela que você não viu nascer
Sou a morte e a vida
O amargo da língua,

Sou a tua mãe e tua prima,
Tua esposa e também inimiga
Sou a tua embriaguês
O teu tacto e o teu faro
Sou a resposta e a dúvida,
O asco e o perfume

Sou a tua bicicleta e a tua bengala,
O cigarro que o teu pulmão inala
Sou o gelo, o fogo,
O filho, o beijo quente
Eu sou o sexo, o amor
Sou o ópio, a erva, o odor
Sou a senhora e seu senhor
Sou cobra, camaleão,
Sou a rosa e seu botão,

Sou o cravo, a bola,
A briga, a violência
Sou a pérola dada aos porcos
Eu sou o verão, o inferno
O céu e o etéreo

Sou faca de dois gumes
Sou aço, sou ouro
Sou bota de couro

Eu sou o sertão,
A amazónia,
Sou o jacaré
Sou a macedónia
Sou Juliana, Mariana
José, sou Francisco,
Carlitos e Mané

Eu sou a doença, a cólera profunda
A tinta do cabelo e o cabelo também
Eu sou a sede, a água, o braço, a unha, o espelho, a rocha, a lupa

Sou Flamengo, sou São Paulo
Sou Janeiro até chegar Dezembro
Eu sou setembrista e Marcelista,
Sou Caetano e Buarque,
Sou Veloso e Joana D’arc
Sou o Ruca, sou o Noddy e o Lula tambérm

Sou a rapidez e a vagareza
Sou o paradoxo e também a proeza
Sou a vergonha, a sátira
Sou vagabunda, sou comportada
Sou leviana
Sou reta, sou torta, paralela,
Sou bicetriz e imperatriz
Sou poética, sou vulgar
Sou culta, impopular
Sou descida, sou subida
Sou o tudo e o nada me guarda

Sou a inércia e a dança
Sou o mar e o espaço,
Estrela do céu e do mar também
Sou toda gente e não sou ninguém

Sou triste e feliz
Professora e aprendiz
Sou música e o silêncio
Sou o apito, o grito, a primeira e a última
Sou personagen e também sou real
Sou a capoeira e os escravos e também o carnaval

Sou a missa do galo,
O padre, o ateu,
Sou o natal e a aversão à datas
Sou o retrato, o pobre, o rico, o cheiroso e o fedido
Sou Patrício. Sou Judeu
Sou tudo isso!
E ainda sim,
ninguém sabe quem sou eu


(Poema da Obra "Era uma vez a Poesia..." de Marcella Reis pela Chiado Editora)














 Capítulo IV
Nanã 

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Parte 2
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Oxalá eu tivesse um filho teu!


  “  No início o mundo e as coisas eram formadas por pântanos e águas. Somente por isso o mundo era rodeado e feito. Nós orixás vivíamos em orum e só de vez em quando desciamos à terra, nome que os humanos costumam dar a ayê. Foi então que Olorum, o nosso senhor chamou Oxalá e confiou-lhe  a tarefa de criar e dar terra firme ao mundo. Olorum cedeu a Oxalá um pombo, uma galinha com pés de cinco dedos e uma concha de águas. Oxalá foi até ao pântano e pousou a concha, soltando assim a galinha e o pombo que ciscaram toda a terra que misturou-se na água formado uma espécie de barro. Olorum enviou então dos céus um camaleão para saber se Oxalá havia conseguido realizar o trabalho que havia lhe dado. E de certo que ele conseguira. Oxalá teve a honra de criar o homem e a mulher através do barro que havia no pântano e Olorum soprou-lhes para dentro da boca e deu o ar da vida aos orixás e a todos os seres humanos. Foi uma felicidade só para os deuses e para os humanos.              
     Quando jovem, Oxalá era conhecido como Oxaguiã.  Eu era considerada a grande deusa guerreira das Bahias. O moço divino, morava num reino muito bonito, reino este que eu como boa guerreira , tinha a pretenção de conquistar. Mas ao chegar ao reino e ver aquele moço tão belo acabei por me apaixonar por ele no momento em que o mirei.  Declarei-me para ele e qual não foi a minha desilusão, quando ele me disse que o seu coração já pertencia a uma outra mulher. Eu lhe perguntei que mulher era esta. Ele me respondeu que... bem. Era uma sereia. Ele só havia me dito isso. Eu perguntei-lhe o nome dela e com medo de que eu lhe fizesse algum mal a ela, não me dissera. Desisti de atacar e conquistar o seu reino e todos os dias campeava por lá só para admirá-lo e descobrir quem era a sua esposa.
     Numa noite muito azul e prateada do mais cintilante luar, eu resolvi seguir  Oxaguiã e o vi caminhando para a praia  Bonita daqui da Bahia. Ele ficou durante muito tempo sentado na areia, admirando as ondas que iam e voltavam para os seus pés. As espumas das ondas iam se juntando nas suas pernas cada vez mais, como se fossem um véu prateado. De repente, um rabo de peixe apareceu pelo alto da espuma e voltou a esconder-se entre ela novamente, até que uma explosão leve de água aconteceu em todo o corpo dele,  espirrando até em meu rosto que estava alguns metros distantes dalí. No mais absurdo do inacreditável, aquela espuma líquida transformou-se num tecido branco e esvoaçador. E o mar tomou a forma azul de um mundo de cabelo. Ao meio de todo aquele emaranhado de vestido e cabelos ondulantes, apareceu do escondido, o corpo escultural e a face perfeita de uma sedutora e venusiana mulher, pronta para amar e ser amada pelo meu amado Oxaguiã.
     Daí por diante, eu percebi que Oxaguiã casava-se todas as noites com aquela mulher do mar que usava um véu feito de espuma e cabelo de água. E que todas as noites era a sua lua de mel e que... todas as noites também, ela dava luz a milhares de filhos dele. Na verdade, ela dava a “Lua” a milhares de peixinhos. Fiquei boquiaberta! Não podia acreditar numa coisa daquelas. Mas era mesmo verdade. Os filhos deles era simplesmente... peixes!
     Com tudo isso, eu fiquei obcecada em dar um filho ao homem que tão platónicamente eu amava. Eu queria dar a ele filhos que não fossem peixes. E passado 9 dias e 8 noites em que o episódio com a mulher- peixe se repetia, eu invadi o seu quarto numa madrugada e supliquei-lhe que me desse um filho. Ele reclinou-se ao meu pedido. E disse que não podia dar um filho a quem ele tinha quase como uma filha. Ele contou-me que ele havia criado o meu corpo e o modelado do barro de um mangue. Eu havia sido a primeira mulher-deusa a ser modelada por ele.  E depois que ele me fizera emprestei-lhe do meu barro para a criação dos seres humanos. Havia tanto mistério dentro do meu ser que até para mim era um mistério tudo isso não ter sido nunca recordado.Ele era o meu co-criador. Então eu lhe disse sorrindo:
     - Segundo a crença de alguns humanos, Adão foi criado do barro e foi o primeiro homem a pisar na terra. Da costela deste homem foi feito Eva. Costela esta que era barro do corpo de Adão. Tu foste o primeiro Orixá a pisar a terra e eu a primeira a ser feita. É justo que me tomes. É justo que recebas também o meu amor. Dar-te-ei um filho de verdade. E por teres me moldado, não serei a tua segunda esposa, mas a primeira.
     Dizendo estas palavras abracei-o com força e o seu corpo divino fundiu-se ao barro do meu corpo, mangue forte e enamorado e nesta madrugada eu lhe revelei todos os meus mistérios...
     ( "Quando os Orixás pisavam a Terra" escrito por Marcella Reis/ Pinturas Nide Bacelar)

    

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Capítulo III
Rosa Caveira do Cruzeiro
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Parte 2
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O feitiço

  
   Rosa Caveira do Cruzeiro saiu do transe em que estava e pediu para que Oyá a seguisse. Com muito receio e medo Oyá o fez. Atrás do velho casebre e de toda aquela tristeza apodrecida e seca estava resguardado um belo jardim repleto de rosas amarelas e vermelhas e plantas rasteiras verdejantes. Oyá não podia crer no que os seus olhos viam. Era um contraste absurdo entre um jardim-paraíso e um monte de terra repleta de milho seco e gado morto.
     Rosa Caveira do Cruzeiro estava mais bonita alí, no meio de todo aquele jardim calunga.
     - Eu sempre fui diferente das minhas irmãs. Todas elas casaram-se com agricultores da Região da Bahia. Grandes agricultores eu diria. Mas eu nunca quis me casar ou me prender a alguém. Desde pequena me empenhei em saber de todos os feitiços de ayê e orum. Tudo o que os meus pais sabiam eu tentei aprender. Eles eram grandes feiticeiros e sábios. E, acabei me tornando uma grande feiticeira também. A minha irmã mais velha não suportava o apreço que os meus pais tinham por mim e eu por eles. E por inveja ela matou os meus pais com um feitiço de magia negra.
     -E você, o que fez?- perguntou Oyá receando a resposta que sairia dos seus lábios em formato de coração.
   - Eu a matei! Não tenho gosto em dizer isso e nem em tê-lo feito. Raiva só traz o mal e a morte dela não trouxe de volta vida aos meus pais. É por isso que tem que se tomar cuidado com o que se pede ou com o feitiço que se faz.
     Oyá começava a entender o reclinamento de Rosa ao seu pedido.
     - Depois que matei a minha irmã, todas as outras passaram a me tratar de forma cordial. Nunca mais se atreveram a me mal tratar ou a me fazerem mal. Eu decidi sair daqui com apenas 19 anos. Peguei a estrada do mundo. E numa destas minhas andanças eu me cruzei com um mago. Um velho mago. Juntos percorremos várias aldeias e as livramos da tirania de grandes senhores feudais. Livramos cidades da peste e magia negra.  João Caveira foi meu único e grande amor.  Quando o conheci ele tinha 60 anos.  Mas eu nunca enxerguei velhice naquele homem. Aliás, ele nunca pareceu ter a idade que tinha. Ele, junto com seus quatro irmãos me ensinaram milhares de feitiçarias. Sei tudo que pode ser feito com ervas, perfumes, poções e tudo que se pode fazer num cruzeiro. Aprendi tudo isso com ele e com a minha falecida mãe. Um certo dia eu tive a visão de que as minhas irmãs preparavam a minha morte através de um feitiço e antes que este pudesse chegar até mim eu usei o feitiço do espelho e a maldição se voltou contra elas matando-as todas. E... o feitiço se voltou contra o feiticeiro. Uma feiticeira tem que tomar cuidado a quem direcciona o seu feitiço. Oxum é forte e tem sempre um espelho na mão direita. Eu não ouso jogar feitiço algum na mulata de Xangô.
    Oyá abaixou a cabeça desconsolada e envergonhada com a sua atitude. Rosa continuou a falar:
     - Eu não faço feitiços negros, muito pelo contrário, eu só faço feitiços brancos. Eu sei que todos me chamam de mulher-demónio só por que uso o crânio de uma caveira com uma rosa amarela no maxilar dela para fazer todas as minhas magias e porquê vim ao mundo as mãos de uma caveira. Caveira esta que me visita todos as minhas primaveras. Caveira esta que é a minha adorada avó.
     Oyá olhava Rosa Caveira agora sem medo e com maior respeito.
   -E o que aconteceu ao João Caveira?
    -Morreu aos 77 anos. Está enterrado aqui neste cemitério-jardim. Depois que ele faleceu eu voltei para esta terra  que os meus pais nos deixaram e estava assim, este lugar grotesco, seco, cheio de ervas e animais mortos. O jardim estava morto também. Decidi me dedicar apenas ao cemitério de meus pais. As minhas irmãs descuidaram-se do que mais me fazia lembrar os meus pais por pura vingança.
     -E os irmãos do mago sabem que o corpo dele está aqui?
     -Devem saber. Eles andam a minha procura.- disse Rosa com certa preocupação nos olhos.
     - Entendo como a sua história é triste e a tua postura é muito corajosa perante toda esta tristeza. – disse Oyá
     - Epahei Iansã! Dona das tempestades, raios, ventanias e da morte. Com a sua espada e eruesin irás vencer todas a batalhas! Tu és ar em movimento e fogo constante. Oxum carrega sempre o seu abebe disfarçado em leque. Mira-te no espelho dela e o feitiço tomará caminho! – Gritou Rosa repentinamente assustando Oyá que de repente se partira em duas e tomara a forma nebulosa do fogo e do vento. Oyá era a bela Iansã a despedir-se do último fio de raio solar da tarde. Em segundos o crepúsculo tomou conta da aldeia de Aruanda e Rosa entrou para dentro de seu casebre enquanto Oyá montava o seu cavalo rumando para casa, tomada pela força da Iansã que morava dentro de si.

(Excerto do livro "Quando os Orixás pisavam a Terra" escrito por Marcella Reis )